Archive for Outubro, 2013

h1

Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi

Outubro 18, 2013

Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi
talvez para sempre ― a casa e o cheiro dos livros,
a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,
camas desfeitas algures pela manhã,
o abrigo de um corpo agitado no seu sono.

Guarda-o
serenamente e sem pressa, como eu nunca soube.

E protege-o de todos os invernos ― dos caminhos
de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
as feridas devagar, com as mãos e os lábios,
para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
a sua respiração cálida e ofegante
no compasso dos sonhos, que é onde esconde
os mais escondidos medos e anseios.

Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz
antes de adormecer. E depois aguarda que,

na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te,
ainda que não te tenha revelado uma só vez o que queria.

Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul
que os dias trazem à casa quando são tranquilos.

E nada lhe peças de manhã ― as manhãs pertencem-lhe;
deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
atravessa a rua enquanto ainda houver sol.

E assim
haverá sempre sol e para sempre o terás,
como para sempre o terei perdido eu, subitamente,
por assim não ter feito.

Maria do Rosário Pedreira

Arte de Fabienne Barbillon

h1

Dá-me um abraço

Outubro 17, 2013

Dá-me um abraço,
Meu amor,
Une teu corpo ao meu,
Sente meus lábios nos teus,
Estrangula esta ansiedade
Feita de espasmos de amor!…

Dá-me um abraço,
Meu amor,
Que, neste abraço apertado,
Há um rio que brota em mim,
Que corre para a tua foz;
Ele é fonte que alimenta
Este amor que há em nós!…

Acácio Costa, in Palavras Nossas (Estados de alma)- volume II

Arte de Tatyana Ilieva

h1

Quem toca na espuma mergulha no mar

Outubro 16, 2013

Quem toca na espuma
mergulha no mar.
Assim comecei a amar-te.
Primeiro uma gota
invisível. Agora
no sexo que me abres
na saliva que me sacia
a terra toda e todos
os seus rios.

Casimiro de Brito, in AMAR A VIDA INTEIRA (Roma Ed., 2011)

imagem: Autor não mencionado

h1

A indecisão do poema

Outubro 15, 2013

encontro-te
resplandecente sob a luz do amanhecer
e beijo a tua imagem numa carícia
bafejada nas enseadas do desejo

faço de ti o caminho
o momento
o sabor das minhas horas..

João Carlos Esteves, in INVENTEI-TE AS MANHÃS (Chiado Ed., 2013)

Imagem: Michal Lukasiewicz

h1

Abraçar o dia

Outubro 13, 2013

Abraçar o dia como se a luz dos teus olhos estivesse nele.

Carlos Eduardo Leal (a publicar)

Imagem:  Jurgen Gorg

 

h1

Procuro no corpo uma gentileza nova

Outubro 13, 2013

Procuro no corpo uma gentileza nova
a garua pardente de um pesado rochedo
envolto em longos enrolados e sedosos cabelos
É a densa divindade a divindade leve
dádiva de um firmamento submerso de selvagem suavidade
para além do tumultuoso desastre e da violência dos monstros
Eurídice num barco obscuro com o seu rosto de lua
sobre o seu túmulo branco entre a sombra e o canto
oferece o torso vegetal e o seu seu sombrio sangue
entre nostálgicos murmúrios e voluptuosos queixumes
Ela é a rocha a sombra adormecida
no vermelho silêncio do meu corpo ancestral
e só ela pode dar um rosto eterno ao mar
É ela que se ergue e se estende na praia
desta página aberta ao seu divino corpo
E eu que sou eu senão o seu amante
que vive do seu sopro que bebe o seu silêncio

António Ramos Rosa,

in Os animais do Sol e da Sombra seguido de O Corpo Inicial (Quási, 2003)

Imagem: Meewha Kim

h1

Soneto

Outubro 12, 2013

Amor desta tarde que arrefeceu
as mãos e os olhos que te dei;
amor exacto, vivo, desenhado
a fogo, onde eu próprio me queimei;

amor que me destrói e destruiu
a fria arquitectura desta tarde
– só a ti canto, que nem eu já sei
outra forma de ser e de encontrar-me.

Só a ti canto que não há razão
para que o frio que me queima os olhos
me trespasse e me suba ao coração;

só a ti canto, que não há desastre
de onde não possa ainda erguer-me
para encontrar de novo a tua face.

Eugénio de Andrade,

in OS AMANTES SEM DINHEIRO (1950), in POESIA (Modo de Ler, 2011)

Imagem: Michal Lukasiewicz

h1

A demora

Outubro 10, 2013

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto, in ” idades cidades divindades”

Imagem: Fanny Nushka Moreaux

h1

Apelo

Outubro 8, 2013

Porque
não vens agora, que te quero
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro e eu desespero
O futuro é o disfarce da impotência.

Hoje, aqui, já, neste momento,
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento
O desejo o limite dos mortais.

Miguel Torga

Imagem: Fanny Nushka Moreaux

h1

Rangia entre nós dois a música da areia

Outubro 7, 2013

Rangia entre nós dois a música da areia
como se fosse Agosto a dedilhar um sistro
Agora está fechada a casa onde te amei
onde à noite uma vez devagar te despiste

Floresça o clavicórdio em pleno mês de Outubro
Na harpa de Setembro entrelaçou-se a vinha
A que vem de repente entre os dois este muro
feito de solidão de sal de marés vivas

Podia conjurar-te a que não me esquecesses
mas é longe do Mar que os navios são tristes
De que serve o convés com a sombra das redes

Quis a tua nudez Não quis que te despisses

David Mourão-Ferreira,
in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR, Antol. org. por Vasco Graça Moura, (Lisboa, Quetzal, 2003)
Imagem: Arunas Rutkus