Archive for the ‘Ana Luísa Amaral’ Category

h1

Se for preciso, irei buscar um sol…

Agosto 16, 2014

Se for preciso, irei buscar um sol
para falar de nós:
ao ponto mais longínquo
do verso mais remoto que te fiz

Devagar, meu amor, se for preciso,
cobrirei este chão
de estrelas mais brilhantes
que a mais constelação,
para que as mãos depois sejam tão
brandas
como as desta tarde

Na memória mais funda guardarei
em pequenas gavetas
palavras e olhares, se for preciso:
tão minúsculos centros
de cheiros e sabores

Só não trarei o resto
da ternura em resto desta tarde,
que nem nos foi preciso:
no fundo do amor, tenho-a comigo:
quando a quiseres.

Ana Luísa Amaral

Arte de  Ingrid Tusell Domingo

 

h1

Anjos caídos

Julho 28, 2014

Neste palco de sol,
de repente:
os teus lábios:
anjos caídos mas abençoando

Cada curva e tremura
dentro do nervo exacto
da memória

Por esses lábios
eu faria tudo:

rasgava-me de sangue
e inocência,
partia com as mãos vitrais
e estrelas,
desintegrava o sol

Já não anjos caídos
os teus lábios,
mas deuses transportados
pelos meus

Ana Luísa Amaral, in Imagias (Gótica, 2002),

in Inversos – Poesia 1990-2010 (Pub. D. Quixote, 2010)

Arte de Kamu

h1

Tento empurrar-te de cima do poema

Janeiro 30, 2014

Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.

Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir…
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?

E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?

Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.

Ana Luísa Amaral, in Coisas de Partir (Coimbra, Fora do Texto, 1993)

Arte por Renata Brzozowska

h1

Título por haver

Agosto 20, 2010

No meu poema ficaste
de pernas para
o ar
(mas também eu
já estive tantas vezes)

Por entre versos vejo-te as mãos
no chão
do meu poema
e os pés tocando o título
(a haver quando eu
quiser)

Enquanto o meu desejo assim serás:
incómodo estatuto:
preciso de escrever-te
do avesso
para te amar em excesso

Ana Luísa Amaral

Imagem: Kabuki