Archive for the ‘José Saramago’ Category

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Aprendamos, amor, com estes montes

Novembro 25, 2014

Aprendamos, amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito 
De banhar no azul dos horizontes.

Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes
E desçamos ao mar do nosso leito.

José  Saramago, in Os Poemas Possíveis (Portugália Ed., 1966)

Arte de Christian Schloe

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No teu ombro pousada, a minha mão

Agosto 28, 2014

No teu ombro pousada, a minha mão

Toma posse do mundo. Outro sinal

Não proponho de mim ao que defino:

Que no mínimo espaço desse gesto 

Se desenhem as formas do destino.

José Saramago, in Provavelmente Alegria (Caminho, 5ª ed., 1999)

Arte por Pier Toffoletti 

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Ainda agora é manhã

Julho 31, 2014

Ainda agora é manhã, e já os ventos
Adormecem no céu. Pouco a pouco,
A névoa antiga e baça se levanta.
Ruivamente, o sol abre uma estrada
Na prata nublada destas águas.
É manhã, meu amor, a noite foge,
E no mel dos teus olhos escurece
O amargo das sombras e das mágoas

José Saramago, in Provavelmente Alegria (Caminho, 1985)

Arte de  Alexei Bazanov

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É lá que te espero!

Julho 17, 2014

Lá no centro do mar, lá nos confins
onde nascem os ventos, onde o sol
sobre as águas doiradas se demora;

Lá no espaço das fontes e verduras,
dos brandos animais, da terra virgem,
onde cantam as aves naturais:

Meu amor, minha ilha descoberta,
é de longe, da vida naufragada,
que descanso nas praias do teu ventre,
enquanto lentamente as mãos do vento,
ao passar sobre o peito e as colinas,
erguem ondas de fogo em movimento.

José Saramago

Arte de Autor desconhecido

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Madrigal

Janeiro 27, 2014

Foi milagre? Ideia louca.
Mas que mais posso dizer
Desta profunda alegria
De ver a alma aparecer
No riso da tua boca?

Ainda se fosse a tua,
Entendia,
Mas a minha que faz lá?
Parece um caso da lua
(Tais coisas não são de cá)
Andar-me a alma contigo:
Foi milagre. Bem o digo.

José Saramago, in Provavelmente Alegria, Caminho, 5ª ed., 1999

Arte por Sam Carlo

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As palavras de amor

Setembro 30, 2013

Esqueçamos as palavras, as palavras:
As ternas, caprichosas, violentas,
As suaves de mel, as obscenas,
As de febre, as famintas e sedentas.

Deixemos que o silêncio dê sentido
Ao pulsar do meu sangue no teu ventre:
Que palavra ou discurso poderia
Dizer amar na língua da semente?

José Saramago, in PROVAVELMENTE ALEGRIA (Caminho, 5ª ed., 1999)

Imagem: Connie Chadwell

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Inventário

Junho 3, 2013

De que sedas se fizeram os teus dedos,
De que marfim as tuas coxas lisas,
De que alturas chegou ao teu andar
A graça de camurça com que pisas.

De que amoras maduras se espremeu
O gosto acidulado do teu seio,
De que Índias o bambu da tua cinta,
O oiro dos teus olhos, donde veio.

A que balanço de onda vais buscar
A linha serpentina dos quadris,
Onde nasce a frescura dessa fonte
Que sai da tua boca quando ris.

De que bosques marinhos se soltou
A folha de coral das tuas portas,
Que perfume te anuncia quando vens
Cercar-me de desejo a horas mortas.

José Saramago

Imagem: Maria Szollosi

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Teu corpo de terra e água

Julho 19, 2010

Teu corpo de terra e água
Onde a quilha do meu barco
Onde a relha do arado
Abrem rotas e caminho

Teu ventre de seivas brancas
Tuas rosas paralelas
Tuas colunas teu centro
Teu fogo de verde pinho

Tua boca verdadeira
Teu destino minha alma
Tua balança de prata
Teus olhos de mel e vinho

Bem que o mundo não seria
Se o nosso amor lhe faltasse
Mas as manhãs que não temos
São nossos lençóis de linho.

José Saramago

Arte de Tiina Heiska 

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Estudo de nu

Junho 20, 2010

Essa linha que nasce nos teus ombros,
Que se prolonga em braço, depois mão,
Esses círculos tangentes, geminados,
Cujo centro em cones se resolve,
Agudamente erguidos para os lábios
Que dos teus se desprenderam, ansiosos.

Essas duas parábolas que te apertam
No quebrar onduloso da cintura,
As calipígias ciclóides sobrepostas
Ao risco das colunas invertidas:
Tépidas coxas de linhas envolventes,
Contornada espiral que não se extingue.

Essa curva quase nada que desenha
No teu ventre um arco repousado,
Esse triângulo de treva cintilante,
Caminho e selo da porta do teu corpo,
Onde o estudo de nu que vou fazendo
Se transforma no quadro terminado.

José Saramago

Imagem: Trisha Lamby

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Intimidade

Abril 25, 2010

No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.

José Saramago

Imagem: Vladimir  Dunjic