Archive for Outubro, 2013

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Soneto

Outubro 30, 2013

Amor desta tarde que arrefeceu
as mãos e os olhos que te dei;
amor exacto, vivo, desenhado
a fogo, onde eu próprio me queimei;

amor que me destrói e destruiu
a fria arquitectura desta tarde
– só a ti canto, que nem eu já sei
outra forma de ser e de encontrar-me.

Só a ti canto que não há razão
para que o frio que me queima os olhos
me trespasse e me suba ao coração;

só a ti canto, que não há desastre
de onde não possa ainda erguer-me
para encontrar de novo a tua face.

Eugénio de Andrade,

in OS AMANTES SEM DINHEIRO (1950), in POESIA (Modo de Ler, 2011)

Arte por Faiza Maghni

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O último amor

Outubro 29, 2013

Era o último amor. A casa fria,
os pés molhados no escuro chão.
Era o último amor e não sabia
esconder o rosto em tanta solidão.

Era o último amor. Quem adivinha
o sabor breve pela escuridão?
Quem oferece frutos nessa neve?
Quem rasga com ternura o que foi verão?

Era o último amor, o mais perfeito
fulgor do que viveu sem as palavras.
Era o último amor, perfil desfeito
entre lumes e vozes e passadas.

Era o último amor e não sabia
que os pés à terra nua oferecia.

Luís Filipe Castro Mendes,

in OS AMANTES OBSCUROS, incluído em POESIA REUNIDA, (Quetzal, 1999)

Arte por Malcolm Liepke

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Com a tua letra

Outubro 26, 2013

Fala-se de amor para falar de muitas coisas
que entretanto nos sucede.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.
Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não para.
Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.

Fernando Assis Pacheco

Arte por Malcolm Liepke

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Dia 164

Outubro 26, 2013

Uma fogueira é sempre uma celebração entre o ar e outra matéria.
Vem. Vamos arder nos braços um do outro. Depois, as cinzas
hão-de espalhar-se pela memória desta noite.

Joaquim Pessoa, in ANO COMUM (Litexa, 2011)

Arte por Erika Herazo

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Silêncio

Outubro 25, 2013

Amei-te
Abrindo-me mais que o linho entre as pernas
Mais que a alma rasgada
Entre todos os poemas…

Sentia-te carne de mim
Essência de jasmim
Na erecção da tua ânsia
Brindando êxtase de chocolate
Na íris de Afrodite
Percorrendo enseadas de nós.

Amei-te tanto
Que julguei esquecer-me!

Reinvento-me
Na força com que me despes
Silêncio
Devora de vez esse teu desejo!
Abro para ti minhas pernas!

Célia Moura, in NO HÁLITO DE AFRODITE (a publicar)

Arte por Degas

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Poema

Outubro 24, 2013

Parte: como se tivesses de ser esquecida,
deixando atrás uma imagem de sombra. Não
leves contigo as palavras que trocámos,
como cartas, num instante de despedida; mas
não te esqueças da luz da tarde que os teus
olhos abrigaram. Por vezes, lembrar-me-ei
de ti. É como se, ao voltar-me, ainda me
esperasses, sem um sorriso, para me dizeres
que o tempo tudo resolve. Não te ouço; e,
ao aproximar-me dos teus braços, vejo-te
desaparecer. Mais tarde, penso, isto fará
parte de um poema; mas tu insistes. O amor
chama-nos, de dentro da vida; obriga-nos a
renunciar à imobilidade da alma, a sacrificar o corpo a um desejo de memória.

Nuno Júdice

Arte por Yarek Godfrey

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Nos teus olhos alguém anda no mar

Outubro 23, 2013

Nos teus olhos alguém anda no mar
alguém se afoga e grita por socorro
e és tu que vais ao fundo devagar
enquanto sobre ti eu quase morro.

E de repente voltas do abismo
e nos teus olhos há um choro riso
teu corpo agora é lava e fogo e sismo
de certo modo já não sou preciso.

Na tua pele toda a terra treme
alguém fala com Deus alguém flutua
há um corpo a navegar e um anjo ao leme.

Das tuas coxas pode ver-se a Lua
contigo o mar ondula e o vento geme
e há um espírito a nascer de seres tão nua.

Manuel Alegre, in SETE SONETOS E UM QUARTO (Pub. D. Quixote, 2005)

Arte por Tzviatko Kinchev

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Primeira palavra

Outubro 20, 2013

Aproxima o teu coração

e inclina o teu sangue

para que eu recolha

os teus inacessíveis frutos

para que prove da tua água

e repouse na tua fronte

Debruça o teu rosto

sobre a terra sem vestígio

prepara o teu ventre

para a anunciada visita

até que nos lábios humedeça

a primeira palavra do teu corpo

Mia Couto, in RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS (Caminho, 2009)

Arte de Alena Plihal

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Deita-te aqui – esta noite, dentro de mim

Outubro 20, 2013

Deita-te aqui – esta noite, dentro de mim,
está tanto frio. Se fores capaz, cobre-me de
beijos: talvez assim eu possa esquecer para
sempre quem me matou de amor, ou morrer
de uma vez sem me lembrar. Isso, abraça-me

também: onde os teus dedos tocarem há uma
ferida que o tempo não consegue transportar.
Mas fecho os olhos, se tu não te importares, e
finjo que essa dor é uma mentira. Claro, o que

quiseres está bem – tudo, ou qualquer coisa,
ou mesmo nada serve, desde que o frio fique
no laço das tuas mãos e não regresse ao corpo
que te deixo agora sepultar. Não sentes frio, tu,

dentro de mim? Nunca nevou de madrugada no
teu quarto? Que país é o teu? Que idade tens?
Não, prefiro não saber como te chamas.

Maria do Rosário Pedreira

Arte por Serge Marshennikov

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de palavras se escreve amar

Outubro 19, 2013

de palavras
se escreve amar
que amar cegue
de luz palavras
que de palavras
breve escreve
o ser de não ser
senão palavras

mas se de palavras
amar se escreve
que de folhas brancas
vida leve
o que de palavras
breve

e reste apenas
o ser no ser
de existir
no princípio do Verbo
que no princípio
O era e para sempre
SER

Carla Furtado Ribeiro, in EM SILÊNCIO (Chiado Editora, 2013)

Imagem: Jurgen Gorg