Archive for Junho, 2014

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Serenando

Junho 30, 2014

na dormência do encanto

o feitiço do sonho

que perdura em meu canto

e assim

sozinha no meu leito

se abraça em mim

no calor

a solidão do teu meu seio, doce peito!

Ana Fonseca, in No Leito do Meu Pensamento (Universus, 2011)

Arte de Amadeo Modigliani

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Capricho

Junho 26, 2014

Escolher a morada dos pássaros
sobre o oceano,
essa clara morada, vento de esperança,
sem norte e sem sul,
apenas azul,
liberdade e fluir e calor
da luz irradiante.
Escolher o ninho dos teus braços,
a tua boca, enseada da minha,
os teus olhos, sombrio delírio dos meus,
errante,
escolher-te e não o saber,
como a árvore desconhe o destino
que faz dela uma promessa do céu.

Joana Lapa, in Lettera Amorosa (Afrontamento, 2013)

Arte por Pier Toffoletti 

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Parte comigo

Junho 24, 2014

Parte comigo,
Para uma praça vazia
Que acorda antes da cidade,
Onde as estrelas
Se entrelaçam nos nossos dedos.
Parte comigo,
Sentir o sol beijar-nos a pele,
Sentir que o nosso tempo
Existe para além do tempo todo
Onde nos perdemos continuamente.
Parte comigo,
Onde não posso encontrar mais
Que o teu rosto, que o teu sorriso,
Que o teu nome murmurado letra a letra,
Pétala a pétala.
Parte comigo,
Onde a noite adormece nos teus braços,
Onde nos misturamos como brisas e beijos,
Na praia onde as ondas nos imitam.
Parte comigo,
Até onde nos leve o último raio de sol do dia

Paulo Eduardo Campos, in Na Serenidade dos rios que enlouquecem

(Amores Perfeitos, 2005)

Arte por Stefan Kuhn

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Memória excessivamente vísivel

Junho 23, 2014

Sobre as frias cinzas de uma incandescente memória

vejo-te
nas pontas dos dedos sobre os olhos cerrados

vejo-te
no apogeu da ideia sobre a sombra da lua

vejo-te
no ocaso posto sobre o dia cansado

sinto-te
sem nadar nas águas do teu porto tão próximo

sinto-te
sem sofrer na carne as esquinas dos teus ossos

Ansiando pelo peso da pele que perdes ao passar por minhas mãos
afaga-me levemente tua transitória visibilidade
e para da memória se apagarem tão incandescentes cinzas
afoga-me o fogo no vislumbre do teu corpo fugidio

José Bernardes, in Mãos Inquietas (Edita-Me, 2012)

Arte por Gun Legler

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Realidade

Junho 16, 2014

Por causa de um livro
vieste ao meu encontro.
Era Verão, não sabias de nada
nem isso interessava. Palavras
amavam-se fora de ti,
no atropelo das emoções.
Lá chegaria a primeira vez,
o encontro apressado num lugar
público. Desfeito o erro
ao toque da pele, não sei
se havia medo, a paixão queria-me
no lugar exacto do teu coração.
Palavras enrolam-se na sombra
da vida a dor do sentimento.

Atingido o espírito, o tempo
da infância, a realidade. Em ti
a solidão que o prazer
não mata. Quero a beleza
dos versos revelada.
Alguns anos passaram sobre
a nossa história que não acabou.
A tarde envelhece e escrevo isto
sem saber porquê.

Isabel de Sá, in Poemas de Amor- Antologia de Poesia Portuguesa

Arte por Alex Alemany

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Insensatez

Junho 11, 2014

Adormecemos
na serenidade dos mares,
como peixes descuidados
anémonas de mão dada,
espelhados e quentes
e sonhamos enrolados nas algas.
Erguemos castelos de confiança na areia
com grãos de certezas,
de mudança…
Levantamo-nos devagar,
ausentes e pouco despertos,
tantas vezes perdidos,
sofridos,
por ventos varridos,
que nos sopram dúvidas,
nos cobrem de ondas de nudez,
nos fazem submergir
até ao fundo do abismo
dos receios e dos perigos,
onde crescem
as algas descoloridas
das incertezas …

José Gabriel Duarte e Lília Tavares (a publicar)

Arte por Carlos Valença

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Ando

Junho 2, 2014

Ando neste desmando
Mas sei para onde vou, e sei
Onde estou
– lugares são sentires –
Tenho esta alma andante
Errante

Luas são as meninas nos olhos
Tuas

Carlos Campos (a publicar)

Arte por Rebecca Lopatin 

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Eis-me

Junho 1, 2014

Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

Sophia de Mello Breyner Andresen,

in LIVRO SEXTO (Moraes Ed, 1962) e OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

Arte por Albena Vatcheva