São tantos eus que transbordo em ti.
Carlos Eduardo Leal (a publicar)
Arte por Csaba Markus
São tantos eus que transbordo em ti.
Carlos Eduardo Leal (a publicar)
Arte por Csaba Markus
Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.
Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.
Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido…
Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
– que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.
Pedro Tamen, in TÁBUA DAS MATÉRIAS – POESIA 1956-1991 (Tertúlia, 1991)
Arte de Beatriz Dipp
Pequei…
Num momento
Em que perdi o teu olhar
E esqueci-me
Do mar suave
Beijo… sempre.
Pequei…
Sem pecado
Na dor de sentir
Como vela aroma
Que escureceu
No mirrar do caminho.
Pequei…
No cair de um abraço
No rasgar de um dizer
No escrever sem fim
No trovão da quebra
Pequei… apenas… sem pecado!
José Luís Outono, MAR DE SENTIDOS (Ed. Vieira da Silva, 2012)
Arte por Fabiano Millani
Completo a última volta
dos teus olhos.
Equilibro o teu rosto suave
na seda que desliza.
A minha sede é um círculo
de luz que me entregaram a beber.
O suor da minha saliva é uma estrela
que se espuma no presente.
Não quero imaginar o nada
que serias sem mim…
Eu sem ti sou tudo mais.
Não vou dormir enquanto
não acordar à tua porta.
Cláudio Cordeiro, in UM TUDO NADA ÁGUA (Lua de Marfim, 2012)
Arte por Emilii Wilk
Adormeço tropeçando
no desejo
encostada ao teu pescoço
Respirando o teu dormir
vou bebendo devagar
o ácido cheiro do teu corpo.
Maria Teresa Horta, em Poesia Reunida
Arte por Hesther van Doornum
vou buscar-te ao fim da tarde,
porque a noite só escurece contigo ao
meu lado, porque a noite aprende por ti
o caminho aberto das estrelas
vou buscar-te ao fim da tarde,
e verás como preparei a casa, como
escolhi a música, como, enfim, espalhei
os objectos mais impressionados contigo,
os que ganharam vida por se interporem
na espessura estreita que vai do meu
ao teu coração
e não mais devolvo, correndo todos os
riscos de não amanhecer nunca
numa loucura propositada por ti
não mais te devolvo,
ocuparás o mundo debaixo e sobre mim,
e não haverá mais mundo sem que seja assim
valter hugo mãe
Arte por Carne Griffiths
Cabelos são os teus cabelos as tuas mãos
e que sinais de perfeição tão triste
que doçura do espírito da terra
que suavidade do espírito da água
Ombros seios umbigo velo sexo
tudo velado pelo ouro da sombra
da castidade ardente honra da carne
honra de amor para o que a conhecer
António Ramos Rosa, in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR,
escolhidos por Vasco Graça Moura (Quetzal, 3ª Ed., 2009)
Arte por Miguel Avataneo
Eu cantarei um dia da tristeza
por uns termos tão ternos e saudosos
que deixem aos alegres invejosos
de chorarem o mal que lhes não pesa.
Abrandarei das penhas a dureza
exalando suspiros tão queixosos
que jamais os rochedos cavernosos
os repitam da mesma natureza.
Serras, penhascos, troncos, arvoredos
ave, ponte, montanha, flor, corrente
comigo hão-de chorar de amor enredos.
Mas ah! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos
que eu derramo os meus ais inutilmente.
Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre (Marquesa de Alorna),
in Poesias, org. de Hernani Cidade (Sá da Costa, 1960)
Arte por Lilya Corneli
Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acelerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!
Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
Poderosa e plácida.
Amor, tão chão de Amor,
Que sensível és…
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!
Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora.
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência.
Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida…
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti e tu de nós?
Irene Lisboa, in POEMAS DE AMOR, seleção de Inês Pedrosa ( D. Quixote, 2000)
Arte por Cayetano de Arquer Buigas
A casa é viva
(A mulher dorme)
Dorme na espuma
nas cores puras
Dorme na espuma do silêncio
Planos brancos
e cores lisas
Dorme no vidro
tranquilo
Dorme viva
A casa é branca
É mais branca no silêncio
É mais branca entre as árvores
A própria cidade é branca
A cabra
cheirou a casa
cheirou o branco
O puro nó
do silêncio
Chego em silêncio
à mulher viva
dormindo
A casa é ela
em espiral
rodando
branca
É fino o ar
quase sem pó
uma árvore dá
uma curta sombra
Uma brisa lava
a casa fresca
A varanda nua
é seca e branca
com sede de mar
A caranda é nua
a mulher é nua
Da casa branca
vê-se o mar
o fulvo dorso
da praia
nu
mulher de areia
deitada e panda
na frescura azul
Uma vela branca
de minúcia fresca
dá ao olhar a brisa
dá ao silêncio o mar
A mulher dorme
viva
na espuma
do silêncio
António Ramos Rosa, in VOZ INICIAL (1960), in ANTOLOGIA POÉTICA ,
Selecção, Prefácio e Bibliografia de ANA PAULA COUTINHO MENDES (Pub. Dom Quixote, 2001)
Imagem: Jaqui Yebra