Archive for Julho, 2014

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Ainda agora é manhã

Julho 31, 2014

Ainda agora é manhã, e já os ventos
Adormecem no céu. Pouco a pouco,
A névoa antiga e baça se levanta.
Ruivamente, o sol abre uma estrada
Na prata nublada destas águas.
É manhã, meu amor, a noite foge,
E no mel dos teus olhos escurece
O amargo das sombras e das mágoas

José Saramago, in Provavelmente Alegria (Caminho, 1985)

Arte de  Alexei Bazanov

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És a sede

Julho 30, 2014

Basta crer que és o mar
para me sentir barco ou falua
para ser peixe ou morrer
na rua
em excesso de azul

És a sede
que arde nos meus olhos
e não te sabia

Edgardo Xavier, in Corpo de Abrigo (Temas Originais, 2011)

Arte de Andrey Aranyshev 

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Paixão

Julho 29, 2014

Com a paixão faço
e armo
a construir-me no excesso

Apunhalo o coração
enveneno
o peito aberto

A paixão é meu
destino
meu final e meu começo

Morrer de amor
e de amar
é a morte que eu mereço

Maria Teresa Horta, in As palavras do corpo

Arte de Andre-Kohn

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Anjos caídos

Julho 28, 2014

Neste palco de sol,
de repente:
os teus lábios:
anjos caídos mas abençoando

Cada curva e tremura
dentro do nervo exacto
da memória

Por esses lábios
eu faria tudo:

rasgava-me de sangue
e inocência,
partia com as mãos vitrais
e estrelas,
desintegrava o sol

Já não anjos caídos
os teus lábios,
mas deuses transportados
pelos meus

Ana Luísa Amaral, in Imagias (Gótica, 2002),

in Inversos – Poesia 1990-2010 (Pub. D. Quixote, 2010)

Arte de Kamu

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A eterna ausência

Julho 19, 2014

Eu aguardei com lágrimas e o vento
suavizando o meu instinto aberto
no fumo do cigarro ou na alegria das aves
o surgimento anónimo
no grande cais da vida
desse navio nocturno
que me trazia aquela com lábios evidentes
e possuindo um perfil indubitável,
mulher com dedos religiosos
e braços espirituais…

Aquela mulher-pirâmide
com chamas pelo corpo
e gritos silenciosos nas pupilas.

Amante que não veio como a noite prometera
numa suspensa nuvem acordar
meu coração de carne e alguma cinza…

Amante que ficou não sei aonde
a castigar meus dias involúveis
ou a afogar meu sexo na caveira
deste carnal desespero!…

António Salvado, in A Flor e a Noite (1955)

Arte de Tifenn Python

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Fatalidade

Julho 18, 2014

Não sei tecer
senão espumas,
nuvens
e brumas.
Coisas breves,
leves,
que o vento desfaz.

Como prender-te
em teia tão frágil?

Luísa Dacosta, in A Maresia e o Sargaço dos Dias

Arte de Michael Klein

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É lá que te espero!

Julho 17, 2014

Lá no centro do mar, lá nos confins
onde nascem os ventos, onde o sol
sobre as águas doiradas se demora;

Lá no espaço das fontes e verduras,
dos brandos animais, da terra virgem,
onde cantam as aves naturais:

Meu amor, minha ilha descoberta,
é de longe, da vida naufragada,
que descanso nas praias do teu ventre,
enquanto lentamente as mãos do vento,
ao passar sobre o peito e as colinas,
erguem ondas de fogo em movimento.

José Saramago

Arte de Autor desconhecido

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Equinócio

Julho 16, 2014

O amor tem uma música que nasce das
catorze linhas que se encontram entre os
dedos que escrevem o soneto e os lábios
que o lêem. Toco esta música quando
desenho o teu rosto, e começo a seguir
a linha que se solta dos teus lábios para
ver se chego ao horizonte do teu corpo,
onde o verso dobra o círculo de um
horizonte imprevisível. E dás-me o outro
lado da vida, para que eu descubra
o continente em que o sol nunca se põe,
as ilhas quentes de um calor de pássaros,
e o rumor incessante da maré a que a
tua voz roubou a espuma de um murmúrio.

Nuno Júdice

Arte por Tomasz Rut

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A solidão da noite

Julho 11, 2014

A solidão da noite
toca violoncelos no meu peito.
O corpo recebe o rumor
de uma concha do mar.

Beijo as grinaldas
que derramas no meu rosto.
As palavras misturam-se
em lamentos desfolhados.

Consagro à madrugada
as cinzas dos pecados que pressinto.
Não há dúvidas que o amor
é uma sensação contraditória.

Cláudio Cordeiro, in Um Tudo Nada Água (Lua de Marfim, 2012 )

Arte de Angela Felipe

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Soneto do amor e da morte

Julho 10, 2014

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco  Graça Moura, in Antologia dos Sessenta Anos (Ed. Asa, 2002)

Arte por Andrey Aranyshev