Archive for Setembro, 2014

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Abro contigo o convite à valsa

Setembro 26, 2014

Abro contigo
o convite à valsa.
O acorde mais longo
atravessa a noite
rebenta a melodia.
Sem remédio
o teu coração
rouba-me a sombra:
Eras alarme
e sedução e eco
na voz da cotovia

João Carlos Martins, in Abismo de Palavras (Temas Originais, 2011)

Arte de Andrius Kovelinas

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Não te queria

Setembro 25, 2014

Não te queria quebrada pelos quatro elementos.
Nem apanhada apenas pelo tacto;
ou no aroma;
ou pela carne ouvida, aos trabalhos das luas
na funda malha de água.
Ou ver-te entre os braços a operação de uma estrela.
Nem que só a falcoaria me escurecesse como um golpe,
trémulo alimento entre roupa
alta,
nas camas.
Magnificência.
Levantava-te
em música, em ferida
– aterrada pela riqueza –
a negra jubilação. Levantava-te em mim como uma coroa.
Fazia tremer o mundo.
E queimavas-me a boca, pura
colher de ouro tragada
viva. Brilhava-te a língua.
Eu brilhava.
Ou que então, entrecravados num só contínuo nexo,
nascesse da carne única
uma cana de mármore.
E alguém, passando, cortasse o sopro
de uma morte trançada. Lábios anônimos, no hausto
de árdua fêmea e macho
anelados em si, criassem um órgão novo entre a ordem.
Modulassem.
E a pontadas de fogo, pulsavam os rostos, emplumavam-se.
Os animais bebiam, ficavam cheios da rapidez da água.
Os planetas fechavam-se nessa
floresta de som unânime
pedra. E éramos, nós, o fausto violento, transformador
da terra
Nome do mundo, diadema.

Herberto Helder, in A Colher na Boca (Edições Ática, 1961),

in Poesia Toda (Assírio & Alvim, 1990)

Arte de Emilia Wilk

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Sopro

Setembro 24, 2014

Sopro-te um beijo
sempre que respiro
as marcas da tua presença
na linha dos dias
meus

Dou-te o mar, o céu, as estrelas,
nas palavras que te invento
e te afagam docemente
em sentires que fazes
teus

João Carlos Esteves, em “Absolvição” (Temas Originais, 2011)

Arte de Jeremy Mann

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Quem te pudesse ver na intimidade

Setembro 21, 2014

Quem te pudesse ver na intimidade
ondulando nas chamas do desejo,
podia ver aquilo que eu só vejo:
um diabo vicioso em liberdade.

E quem te vê, assim, em sociedade,
frágil e doce como é o poejo,
corando simplesmente com um beijo,
não poderá saber qual a verdade:

se és uma, se és outra, se és nenhuma,
se tudo em ti é feito por medida,
se és talhada em basalto ou se és de espuma.

Mas nem que nisso gaste toda a vida,
eu hei de descobrir-te. Ver-te, em suma,
na minha cama nua e não despida.

Joaquim Pessoa,  in Sonetos Eróticos Irónicos & Sarcásticos & Satíricos

& de Amor & Desamor & de Bem & de Mal Dizer

Arte de Meewha Kim

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anoitece

Setembro 16, 2014

anoitece
talvez sejas o mar e
eu vá descendo pelas pernas
azuis do teu corpo, como
a bola de fogo que se introduz mais dentro
nas linhas demasiadas do caderno
ou nos recônditos músculos
do oceano

João Ricardo Lopes

Arte de Malcolm Liepke

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Como é que…

Setembro 14, 2014

Como é que eu,
ouvindo tão mal, distingo
o teu andar desde o princípio do corredor?

Como é que eu,
vendo tão pouco, sei
que és tu chegas, conforme a luz?

Como é que eu,
de mãos tão ásperas, desenho
a tua cara mesmo tão longe dela?

Onde está
tudo o que sei de ti
sem nunca ter aprendido nada?

Serei ainda capaz
de descobrir a palavra
que larga o teu rasto na janela?

(Que seria de nós
se nos roubassem os pontos de interrogação?)

Mário Castrim

Arte de  Roman Zuzuk

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O pequeno sismo

Setembro 13, 2014

Há um pequeno sismo em qualquer parte
ao dizeres o meu nome.

Elevas-me à altura da tua boca
lentamente
para não me desfolhares.
Tremo como se tivera
quinze anos e toda a terra
fosse leve.
Ó indizível primavera!

Eugénio de Andrade

Arte de Anna Bocek

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Quando o amor morrer

Setembro 11, 2014

Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobra as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram.

Ruy Cinatti, in Obra Poética ( Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992)

Arte de Andrew Ferez

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Perda

Setembro 5, 2014

Na luz dos teus olhos
vi um brilho que me iluminou
uma mão que se estendeu
onde meu coração pousou
Foram apenas breves
instantes de pássaro fugido
triste coração regressa
para dentro de si escondido
Mas a recordação é perene
como luzes em enxame
num voo que pica a carne
e a deixa exangue
Deixando na pele a marca
da espera que não se alcança
remate burlesco da desfeita
de quando se perde a esperança
Da memória viva ao viver do sonho
vai a distância de uma vida
aquilo que é é aquilo que tenho
é coisa achada é coisa perdida

José Bernardes, in Palavras Imóveis 

Arte de Jantina Peperkamp

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Veste-me a seda

Setembro 4, 2014

Veste-me a seda
das tuas mãos
serenas
Veste-me a roupa quente da tua pele
e aperta-me com o cinto dos teus braços
no lugar onde o meio traz cansaços
Evita que na ausência de ti gele

Recorta-me
em pequenos pedaços
Ata-me em laços
e guarda-me no coração
antes de saíres para o mundo
e bater no fundo
da traição que te apetece

Edgardo Xavier

Arte de Peter Harskamp