Archive for Março, 2010

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Balançar

Março 30, 2010

“…Agarras a minha mão
com a tua mão
e prendes-me a dizer
que me estás a salvar.
De quê?
De viver o perigo.
De quê?
De rasgar o peito.
Com o quê?
De morrer,
mas de que paixão?
De quê?
Se o que mata mais é não ver
o que a noite esconde
e não ter
nem sentir
o vento ardente
a soprar o coração…”

Mafalda Veiga

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Outra coisa

Março 29, 2010

Apresentar-te aos deuses e deixar-te
entre sombra de pedra e golpe de asa
exaltar-te perder-te desconfiar-te
seguir-te de helicóptero até casa

dizer-te que te amo amo amo
que por ti passo raias e fronteiras
que não me chamo mário que me chamo
uma coisa que tens nas algibeiras

lançar a bomba onde vens no retrato
de dez anos de anjinho nacional
e nove de colégio terceiro acto

pôr-te na posição sexual
tirar-te todo o bem e todo o mal
esquecer-me de ti como do gato

Mário Cesariny

Imagem: Jindra Noewi

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Soneto de aniversário

Março 23, 2010

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece…
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.

Vinicius de Moraes

Imagem: George Underwood

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Tu serás

Março 19, 2010

Tu serás o princípio

e o meu fim

Pegando mal de amor

em chama alta

Vulcão em desacerto

e fogo posto

Tão grande que ele é

e já me mata.

Maria Teresa Horta

Imagem: Duy Huynh

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O teu corpo

Março 13, 2010

O teu corpo transpira o meu ópio.

Não te afastes.

Vasco Gato

Imagem: Duy Huynh

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De noite amada

Março 11, 2010

De noite, amada, prende o teu coração ao meu
e que no sono eles dissipem as trevas
como um duplo tambor combatendo no bosque
contra o espesso muro das folhas molhadas.

Nocturna travessia, brasa negra do sono
interceptando o fio das uvas terrestres
com a pontualidade dum comboio desvairado
que a sombra e pedras frias sem cessar arrastasse.

Por isso, amor, prende-me ao movimento puro,
à tenacidade que tem em teu peito bate
com as asas dum cisne submerso,

para que às perguntas estreladas do céu
responda o nosso com uma única chave,
com uma única porta fechada pela sombra.

Pablo Neruda

Imagem: Renata Domagalkas

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Alegoria floral

Março 8, 2010

Um dia em que a mulher nasça do caule da roseira
que cresce no quintal; ou um dia em que a nuvem
desça do céu para vestir de névoa os seus
seios de flor: seguirei o caminho da água nos
canteiros que me levam ao caule, e meter-me-ei
pela terra em busca da raíz.

Nesse dia em que os cabelos da mulher se
confundirem com os fios luminosos que o sol
faz passar pela folhagem; e em que um perfume
de pólen se derramar no ar liberto da névoa:
procurarei o fundo dos seus olhos, onde corre
uma tranparência de ribeiro.

Um dia irei tirar essa mulher de dentro da flor,
despi-la das suas pétalas, e emprestar-lhe o véu
da madrugada. Então, vendo-a nascer com o dia,
desenharei nuvens com a cor dos seus lábios, e
empurrá-las-ei para o mar com o vento brando
da sua respiração.

Depois, cobrirei essa mulher que nasceu da roseira
com o lençol celeste; e vê-la-ei adormecer, como
um botão de rosa, esperando que a nuvem desça
do céu para a roubar ao sonho da flor.

Nuno Júdice

Imagem: Enrico Maria Cartei

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Tanto silêncio

Março 7, 2010

Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois.

E entre mim eu, isto é, palavras,

formas indecisas

procurando um eixo que

lhes dê peso, um sentido capaz de conter

a sua inocência

uma voz (uma palavra) a que se prender

antes de se despedaçarem

contra tanto silêncio.

São elas, as tuas palavras, quem diz «eu»;

se tiveres ouvidos suficientemente privados

podes escutar o seu coração

pulsando sob a palavra da tua existência,

entre o para cá de ti e o para lá de ti.

Tu és aquilo que as tuas palavras ouvem,

ouves o teu coração (as tuas palavras «o teu coração»)?

Manuel António Pina

Imagem: Leslie Marcus

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Fim e recomeço

Março 5, 2010

Não pode ser luar esta brancura

Nem aves batem asas sobre o leito

Neste quebrar de corpos fatigados

Será em mim o sangue que murmura

Em ti serão as luas do teu peito

Nos jogos do amor recomeçados

José Saramago

Imagem: Leslie Marcus

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Feminina

Março 1, 2010

Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.

Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro –
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer «potins» – muito entretida.

Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar –
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.

Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos – mesmo ao predilecto –
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes…

Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar…

Mário de Sá-Carneiro

Arte por Anna Saenko