Archive for the ‘Eugénio de Andrade’ Category

h1

O pequeno sismo

Setembro 13, 2014

Há um pequeno sismo em qualquer parte
ao dizeres o meu nome.

Elevas-me à altura da tua boca
lentamente
para não me desfolhares.
Tremo como se tivera
quinze anos e toda a terra
fosse leve.
Ó indizível primavera!

Eugénio de Andrade

Arte de Anna Bocek

h1

Que música escutas tão atentamente

Agosto 12, 2014

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?

Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

Eugénio de Andrade

Arte por Orla Kierly

h1

O silêncio

Maio 13, 2014

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,
quando azuis irrompem
os teus olhos
e procuram
nos meus navegação segura,
é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
pelo silêncio fascinadas.

Eugénio de Andrade, in Obscuro Domínio

Arte por Clare Elsaesser

h1

Nas ervas

Janeiro 21, 2014

Escalar-te lábio a lábio,
percorrer-te: eis a cintura
o lume breve entre as nádegas
e o ventre, o peito, o dorso
descer aos flancos, enterrar

os olhos na pedra fresca
dos teus olhos,
entregar-me poro a poro
ao furor da tua boca,
esquecer a mão errante
na festa ou na fresta

aberta à doce penetração
das águas duras,
respirar como quem tropeça
no escuro, gritar
às portas da alegria,
da solidão.

porque é terrivel
subir assim às hastes da loucura,
do fogo descer à neve.

abandonar-me agora
nas ervas ao orvalho –
a glande leve.

Eugénio de Andrade, in Chuva sobre o rosto,

(Modo de Ler/Ed. Afrontamento, 2009)

Arte por Kurt van Wagner

h1

Contigo

Novembro 12, 2013

Acordo na manhã de oiro
entre o teu rosto e o mar.

As mãos afagam a luz,
prolongam o dia breve.

Entre o teu rosto e o mar
ninguém deseja ser neve.

Ninguém deseja o veneno
da noite despovoada.

Acorda-me a tua voz,
nupcial, branca, delgada.

Eugénio de Andrade

Arte por Eiko Ojala

h1

Soneto

Outubro 30, 2013

Amor desta tarde que arrefeceu
as mãos e os olhos que te dei;
amor exacto, vivo, desenhado
a fogo, onde eu próprio me queimei;

amor que me destrói e destruiu
a fria arquitectura desta tarde
– só a ti canto, que nem eu já sei
outra forma de ser e de encontrar-me.

Só a ti canto que não há razão
para que o frio que me queima os olhos
me trespasse e me suba ao coração;

só a ti canto, que não há desastre
de onde não possa ainda erguer-me
para encontrar de novo a tua face.

Eugénio de Andrade,

in OS AMANTES SEM DINHEIRO (1950), in POESIA (Modo de Ler, 2011)

Arte por Faiza Maghni

h1

Soneto

Outubro 12, 2013

Amor desta tarde que arrefeceu
as mãos e os olhos que te dei;
amor exacto, vivo, desenhado
a fogo, onde eu próprio me queimei;

amor que me destrói e destruiu
a fria arquitectura desta tarde
– só a ti canto, que nem eu já sei
outra forma de ser e de encontrar-me.

Só a ti canto que não há razão
para que o frio que me queima os olhos
me trespasse e me suba ao coração;

só a ti canto, que não há desastre
de onde não possa ainda erguer-me
para encontrar de novo a tua face.

Eugénio de Andrade,

in OS AMANTES SEM DINHEIRO (1950), in POESIA (Modo de Ler, 2011)

Imagem: Michal Lukasiewicz

h1

Só as tuas mãos trazem os frutos

Setembro 13, 2013

Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
destes olhos, choupos meus,
carregados de sombra e rasos de água.

Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
– Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos.

Eugénio de Andrade,

in AS MÃOS E OS FRUTOS (lINEAT, 1978), in POESIA DE EUGÉNIO DE ANDRADE (Modo de Ler, 2011)

Imagem: Taras Loboda

h1

Nada

Junho 22, 2013

Nada, nem sequer o verão

está completo. Menos ainda o colar

de sílabas que, desvelado,

te ponho à roda da cintura.

Nunca me pediste mais, nunca

te dei outra coisa.

Quando juntamos as mãos esquecemos

que somos culpados da nossa inocência.

E sorrimos, alheios

ao sol que declina, à estrela

do norte que sabemos no fim.

O privilégio da vida é este

silêncio musical que do teu olhar

cai nos meus olhos

e regressa a ti acrescentado

pela luz da manhã varrendo o mar.

Eugénio de Andrade

Imagem: Bruno Dias

h1

Aqui cantaste nua

Junho 2, 2013

Aqui cantaste nua.
Aqui bebeste a planície, a lua,
e ao vento deste os olhos a beber.
Aqui abandonaste as mãos
a tudo o que não chega a acontecer.

Eugénio de Andrade

Imagem: Evelina Oliveira