Archive for the ‘David Mourão-Ferreira’ Category

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Rangia entre nós dois a música da areia

Outubro 7, 2013

Rangia entre nós dois a música da areia
como se fosse Agosto a dedilhar um sistro
Agora está fechada a casa onde te amei
onde à noite uma vez devagar te despiste

Floresça o clavicórdio em pleno mês de Outubro
Na harpa de Setembro entrelaçou-se a vinha
A que vem de repente entre os dois este muro
feito de solidão de sal de marés vivas

Podia conjurar-te a que não me esquecesses
mas é longe do Mar que os navios são tristes
De que serve o convés com a sombra das redes

Quis a tua nudez Não quis que te despisses

David Mourão-Ferreira,
in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR, Antol. org. por Vasco Graça Moura, (Lisboa, Quetzal, 2003)
Imagem: Arunas Rutkus

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Penumbra

Setembro 28, 2013

Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta nos aponta uma seta

para sermos de novo quem deixámos de ser

David Mourâo-Ferreira, in OBRA POÉTICA (Ed. Presença, 1988)

Imagem: Omar Ortiz (detalhe)

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Baptismo

Agosto 25, 2013

Para atrasar a morte vamos abrir a noite

com música de jazz

Percorrê-la depois

num barco de borracha

Celebrar o segredo

Enforcar a memória

Descobrir de repente

uma ilha que nasce dentro do teu vestido

Chamar-lhe Madrugada

Adormecer contigo

David Mourão-Ferreira

Imagem: Elena Ilku

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Clair de Lune

Julho 5, 2013

Debruço-me e descubro em teu peito descubro

dois globos de cristal num deserto nocturno
duas tendas de fogo onde leio o futuro

David Mourão-Ferreira

Imagem: Anna Razumovskaya

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Preâmbulo

Março 12, 2011

Galopam cavalos
por dentro do sangue

Em dunas resvalam
a boca e as mãos

Crispam-se as pálpebras
Os dedos se inflamam

ao mais leve toque
na tua garganta

assim que de costas
te deito na cama

David Mourão-Ferreira

Imagem: Emilia Wólkiewicz

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Teoria das marés

Fevereiro 18, 2011

Calidamente nua,
sob o vestido leve,
tua carne flutua
no desejo que teve.

Timidamente nua,
revelas, num olhar,
em minhas mãos a lua
que te fez oscilar.

David Mourão-Ferreira

Imagem: Carol Carter

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Conjugamos em coro

Junho 24, 2010

Conjugamos em coro
o verbo amanhecer

com sílabas que roubo
ao que a noite nos dê

David Mourão-Ferreira

Imagem: Claudia Shneider

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Soneto do amor difícil

Novembro 1, 2009

A praia abandonada recomeça
logo que o mar se vai, a desejá-lo:
é como o nosso amor, somente embalo
enquanto não é mais que uma promessa…

Mas se na praia a onda se espedaça,
há logo nostalgia duma flor
que ali devia estar para compor
a vaga em seu rumor de fim de raça.

Bruscos e doloridos, refulgimos
no silêncio de morte que nos tolhe,
como entre o mar e a praia um longo molhe
de súbito surgido à flor dos limos.

E deste amor difícil só nasceu
desencanto na curva do teu céu.

David Mourão-Ferreira

Imagem:  William C. Bryant

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Labirinto ou não foi nada

Julho 31, 2009

Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua…
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!

Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua…
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.

Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.

David Mourão-Ferreira

Imagem: Finela Moore

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Presídio

Julho 31, 2009

Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo,
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco …?

E o ventre, inconsistente como o lodo? …
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo …

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono …
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

David Mourão-Ferreira

Imagem: Finela Moore